Grão de areia, pérola e pegada
Grão de areia, pérola e pegada
Celso Fernandes Campilongo*
Da vasta obra de Tito Mellão Laraya, “O Grão de Areia” (Chiado Editora, 2015) pode ser livro “um pouco pequeno”, como diz Francisco diante de Kívia. Que ninguém se engane: truque de primeira página do escritor experimentado! Modéstia granular do autor, para combinar com o título do livro. Do grão de areia nasce a pérola. Processo dolorido como o parto dos conceitos literários, estéticos e filosóficos. O minúsculo grão incomoda, mas é capaz de feitos gloriosos. Da ostra para dentro, o estranho grão de areia se transforma em beleza rara. Mas, da ostra para fora, os grãos reunidos podem criar infinitas formas. Vários grãos de areia moldam pegadas de gente ou de bicho, concebem castelos ou esculturas e, dessa maneira, igualmente, criam o belo, o artístico e o extraordinário. É nesse movimento entre o interior e o exterior, mediado pela ostra alegórica, que o livro de Tito constrói seu percurso criativo.
O dentro e o fora da ostra são alusões do resenhista. São recorrentes nos vários binários e paradoxos que rondam o estilo do Autor: pensar (interior) ou sentir (exterior)? Trabalho (dentro) ou prazer (com o outro, é dizer, fora)? Hábito (rotina interior que forma a pérola) ou erotismo (variação inventiva de formas)? Labuta ou arte? Francisco (narrador do livro ou autor de autobiografia camuflada?) transita suas angustias, desejos, sonhos e esperanças de um lado para o outro, incessantemente. Não se trata de um ciclo de vida – com começo, meio e fim – mas sim de um “hiperciclo helicoidal” para o infinito. Não existe começo identificável nem fim que dê um basta para a unidade dessas diferenças. A labuta vira arte que se transforma em labuta que retorna em formato artístico. Do grão de areia à pérola ou do grão de areia à pegada na praia, o tempo inteiro o livro se move e transpira escrita irrequieta!
Esse processo poético criativo é emoção, imaginação e paixão. São os elementos que Tito combina “sonhando como um doido e criando como nenhum”. O grão de areia move mundos. Pode ser a percepção do olhar enternecido da amada, quando recebe livro escrito em sua homenagem. Pode ser o grão de sal, em busca de um ideal. Pode ser o “casamento” (presente) ... “do que eu era” (passado) com a “perspectiva do que serei” (futuro) que tem por fruto outro tipo de pérola: paz e satisfação na arte de escrever bem. Unidade somada de passado, presente e futuro, em busca da perfeição.
De um jantar casual à suíte para violoncelo de Bach, mais uma vez, o movimento contínuo de dentro para fora da ostra. A noite começou solitária. De fora chegaram um telefonema e uma visita. No escritório não foi diferente: de dentro, a mobília sóbria e intimidativa; de fora, os clientes que chegam com um caso novo e desafiador.
A segunda parte do livro é de prosa. Aventuras e desventuras de um advogado com seus casos, clientes, colegas e estagiários. Vida de advocacia: introspecção no trabalho e abertura para o mundo. O jurista jamais é um homem divorciado dos problemas do seu tempo e dos anseios da comunidade. Raro ponto em comum entre poetas e advogados: necessária sensibilidade para a vida. É o que Tito Mellão Laraya procura descrever com refinada simplicidade e feliz fluência linguística.
O verbo de Tito é ágil. As palavras brotam com leveza e naturalidade. Escrever bem, dizia Lobato (e sempre vale repetir), é colocar as palavras certas nos lugares certos. Parece fácil, mas dá um trabalho para o qual poucos são vocacionados. Tito Mellão Laraya é um deles. Alguém já disse, com fundadas razões, que as resenhas muitas vezes são inúteis. Sempre são menos do que a obra resenhada. Nunca retratam com fidelidade aquilo que o leitor encontrará. Com está resenha não é diferente. Só terá alguma utilidade se for capaz de despertar no leitor a expectativa de ler um bom livro. “O Grão de Areia” e seu autor merecem a leitura.
*Celso Fernandes Campilongo é professor das Faculdades de Direito da USP e da PUC-SP. Graduado em Direito pela USP, em 1980, foi colega de turma de Tito Mellão Laraya.